Entrarão os hereges nesta igreja e nas outras; arrebatarão essa custódia, em que agora estais adorado dos anjos; tomarão os cálices e vasos sagrados, e aplicá-los-ão a suas nefandas embriaguezes; derrubarão doa altares os vultos e estátuas dos santos, deformá-las-ão a cutiladas, e metê-las-ão no fogo; e não perdoarão as mãos furiosas e sacrílegas, nem às imagens tremendas de Cristo crucificado, nem às da Virgem Maria.
Não me admiro tanto, Senhor, de que hajais de consentir semelhantes agravos e afrontas nas vossas imagens, pois já as permitistes em vosso sacratíssimo corpo; mas nas da Virgem Maria, nas de vossa Santíssima Mãe, não sei como isso pode estar com a piedade e amor de Filho. No Monte Calvário esteve esta senhora sempre ao pé da cruz, e com serem aqueles algozes tão descorteses e cruéis, nenhum se atreveu a lhe tocar nem a lhe perder o respeito. Assim foi e assim havia de ser, porque assim o tínheis vós prometido pelo Profeta: Flagellum non appropinquabit tabernaculo tuo. pois, Filho da Virgem Maria, se tanto cuidado tivestes então do respeito e decoro de vossa Mãe, como consentis agora que se lhe façam tantos desacatos? Nem me digais, Senhor, que lá era a pessoa, cá a imagem. Imagem somente da mesma Virgem era a Arca do Testamento, e só porque Oza a quias tocar, lhe tirastes a vida. Pois se havia então tanto rigor para quem ofendia a imagem de Maria, por que não o há também agora? Bastava então qualquer dos outros desacatos às coisas sagradas, para uma severíssima demonstração vossa, ainda miraculosa. Se a Jeroboão, porque levantou a mão para um Profeta, se lhe secou logo o braço milagrosamente, como aos hereges, depois de se atreverem a afrontar vossos santos, lhe ficam ainda braços para outros delitos? Se a Baltasar, por beber pelos vasos do templo, em que não se consagrava vosso sangue, o privastes da vida e do reino, por que vivem os hereges, que convertem vossos cálices a usos profanos? Já não há três dedos que escrevem sentença de morte contra sacrílegos?!
Enfim, Senhor, despojados assim os templos e derrubados os altares, acabar-se-á o culto divino; nascerá erva nas igrejas, como nos campos; não haverá quem entre nelas. Passará um dia de Natal, e não haverá memória de vosso nascimento; passará a Quaresma e a Semana Santa, e não se celebrarão os mistérios de vossa Paixão. Chorarão as pedras das ruas, como diz, Jeremias que choravam as de Jerusalém destruída: Viae Sion lugent, eo quod non sint qui veniant ad solemnitatem. Ver-se-ão ermas e solitárias, e que as não pisa a devoção dos fiéis, como costumava em semelhantes dias. Não haverá missas, nem altares, nem sacerdotes que as digam; morrerão os católicos sem confissão nem sacramentos; pregar-se-ão heresias nestes mesmos púlpitos, e em lugar de São Jerônimo e Santo Agostinho, ouvir-se-ão e alegar-se-ão neles os infames nomes de Calvino e Lutero; beberão a falsa doutrina os inocentes que ficarem; e chegaremos ao estado que, se perguntarem as filhos e netos dos que aqui estão: - Menino, de que seita sois? Um responderá: - Eu sou calvinista; outro: - Eu sou luterano.
Trecho do Sermão pelo Bom Sucesso das Armas de Portugal Contra as da Holanda (1640)